Está uma geração de partida. Por isso, nunca chegamos a baixar o lenço. Dizer adeus não é fácil; menos, ainda, quando se trata da nata dos bravos construtores do Mundo Moderno. E, em Nova Orleães, só The Meters e Dr. John seriam merecedores de tal distinção. Inventou a 'punch line' mais marcante de uma futura corrida à Casa Branca quando o seu beneficiário maior ainda fazia por não chegar atrasado à escola primária. Deu coragem a quem desce às entranhas da terra para ganhar a vida e cantou como ninguém -porque instigado pelo sopro da pop branca- as noites cálidas do sul. Chegou e partiu com uma chave de ouro nas mãos. A qual lhe abriu uma espécie de 'portas da percepção', E lhe permitiu fazer da sua vida uma viagem iniciática do reconhecimento dos recantos (e da retórica) da intimidade -"From A Whisper To A Scream"- à identificação das verdadeiras forças motrizes deste mundo -"The Bright Mississippi".
Porque sobre ele me detive o bastante para que melhor se avaliasse o peso assumido por Allen no simulacro dos prazeres que deveríamos estar aptos a incutir no nosso quotidiano, faço uso do direito de reproduzir o que nele entrevi no dia da publicação da sua obra final: "The Bright Mississippi". Adeus, Allen. Foi tanto mas soube a tão pouco...
«Allen Toussaint/The Bright Mississippi
O Inventor.
Talvez seja por isso que irá ficar na História. Sobretudo num tempo em que -citando O’Neill- há demasiada gente convencida de que a água começa na torneira (e, pior ainda, que de mais não precisa para se sentir feliz). Mas seria uma injustiça de bradar aos céus se o inconsciente (não tanto involuntário) autor, em 1970, do slogan da campanha de Barack Obama (‘Yes We Can Can’, no original) não viesse, antes, a ser lembrado como o homem que manteve vivo o inestimável património de Nova Orleães recebido das mãos de Louis Armstrong e Professor Longhair ao mesmo tempo que lhe inventava o futuro nas novas e ousadas expressões consagradas em registos seminais como ‘Mother-In-Law’ (Ernie K-Doe, 1961), ‘Ruler Of My Heart’/’Pain In My Heart’ (Irma Thomas/Otis Redding, 1963), ‘Working In The Coal Mine’ (Lee Dorsey, 1966), “Look-Ka Py Py” (The Meters, 1970), “From A Whisper To A Scream” (1971), “In The Right Place” (Dr. John, 1973), “Southern Nights” (1975) e, até ‘Lady Marmalade’ (Labelle, 1974). Porque -talvez mais que na escassa discografia em seu nome- na luxuriante diversidade deste mosaico se acha inscrito o sinal distintivo de Toussaint: o do estilista supremo -a par de MacRabenack/Dr. John- de um inaudito melting pot constituído de partes iguais de Novo Mundo (rock, soul, funk, delta blues, jazz, honky tonk e dixieland), Velha Europa (a tradição francesa no mardi gras e na génese do zydeco), Mãe África (os ritos do voodoo haitiano e a síncope rítmica) e instinto de sobrevivência feito desejo de descoberta.
Ninguém esperaria que o cúmplice de Paul McCartney em “Venus And Mars” (1975) e de Elvis Costello em “The River In Reverse” (2006) viesse dar, agora, (ainda mais) novos mundos ao mundo. Não porque tudo tem um limite mas porque não faltam provas na música recente de que esse instinto de preservação da memória cultural adquiriu redobrado vigor à passagem do furacão Katrina. Nesta perspectiva, e tendo em conta a eterna visão ecléctica cultivada pelo pianista e designer, não surpreende que “The Bright Mississippi” seja uma visita guiada ao património da região-berço da música popular do séc.XX. E, no entanto, uma visita que não tem no jazz a sua ‘língua oficial’ por menor ousadia no momento de meter mãos à obra mas pela razão maior de que -justamente- na tipologia aqui representada em peças de -entre outros- Jelly Roll Morton, Sydney Bechet, Duke Ellington, Leonard Feather e Thelonious Monk (autor da faixa-título) reside o momento histórico mais próximo de um big bang estético e cultural (para não dizer civilizacional) cuja essência se pretende salvaguardar. De resto, não deixa de ser notável até que ponto o ‘exercício de estilo’ que seria de esperar de gente da estirpe de Don Byron, Joshua Redman, Brad Mehldau, Marc Ribot e Nicholas Payton (para mais, tendo como produtor um rocker clarividente como Joe Henry) revela na sua estrutura narrativa acidentada (porque transbordante da mais subtil invenção) como a modernidade permanece um traço central da matriz de Nova Orleães. Ou 99,9% do ar que respira o melómano contemporâneo não tivesse a origem remota nas margens do grande rio que volta a reflectir o luar.» (Ricardo Saló, Maio de 2010)
O Inventor.
Talvez seja por isso que irá ficar na História. Sobretudo num tempo em que -citando O’Neill- há demasiada gente convencida de que a água começa na torneira (e, pior ainda, que de mais não precisa para se sentir feliz). Mas seria uma injustiça de bradar aos céus se o inconsciente (não tanto involuntário) autor, em 1970, do slogan da campanha de Barack Obama (‘Yes We Can Can’, no original) não viesse, antes, a ser lembrado como o homem que manteve vivo o inestimável património de Nova Orleães recebido das mãos de Louis Armstrong e Professor Longhair ao mesmo tempo que lhe inventava o futuro nas novas e ousadas expressões consagradas em registos seminais como ‘Mother-In-Law’ (Ernie K-Doe, 1961), ‘Ruler Of My Heart’/’Pain In My Heart’ (Irma Thomas/Otis Redding, 1963), ‘Working In The Coal Mine’ (Lee Dorsey, 1966), “Look-Ka Py Py” (The Meters, 1970), “From A Whisper To A Scream” (1971), “In The Right Place” (Dr. John, 1973), “Southern Nights” (1975) e, até ‘Lady Marmalade’ (Labelle, 1974). Porque -talvez mais que na escassa discografia em seu nome- na luxuriante diversidade deste mosaico se acha inscrito o sinal distintivo de Toussaint: o do estilista supremo -a par de MacRabenack/Dr. John- de um inaudito melting pot constituído de partes iguais de Novo Mundo (rock, soul, funk, delta blues, jazz, honky tonk e dixieland), Velha Europa (a tradição francesa no mardi gras e na génese do zydeco), Mãe África (os ritos do voodoo haitiano e a síncope rítmica) e instinto de sobrevivência feito desejo de descoberta.
Ninguém esperaria que o cúmplice de Paul McCartney em “Venus And Mars” (1975) e de Elvis Costello em “The River In Reverse” (2006) viesse dar, agora, (ainda mais) novos mundos ao mundo. Não porque tudo tem um limite mas porque não faltam provas na música recente de que esse instinto de preservação da memória cultural adquiriu redobrado vigor à passagem do furacão Katrina. Nesta perspectiva, e tendo em conta a eterna visão ecléctica cultivada pelo pianista e designer, não surpreende que “The Bright Mississippi” seja uma visita guiada ao património da região-berço da música popular do séc.XX. E, no entanto, uma visita que não tem no jazz a sua ‘língua oficial’ por menor ousadia no momento de meter mãos à obra mas pela razão maior de que -justamente- na tipologia aqui representada em peças de -entre outros- Jelly Roll Morton, Sydney Bechet, Duke Ellington, Leonard Feather e Thelonious Monk (autor da faixa-título) reside o momento histórico mais próximo de um big bang estético e cultural (para não dizer civilizacional) cuja essência se pretende salvaguardar. De resto, não deixa de ser notável até que ponto o ‘exercício de estilo’ que seria de esperar de gente da estirpe de Don Byron, Joshua Redman, Brad Mehldau, Marc Ribot e Nicholas Payton (para mais, tendo como produtor um rocker clarividente como Joe Henry) revela na sua estrutura narrativa acidentada (porque transbordante da mais subtil invenção) como a modernidade permanece um traço central da matriz de Nova Orleães. Ou 99,9% do ar que respira o melómano contemporâneo não tivesse a origem remota nas margens do grande rio que volta a reflectir o luar.» (Ricardo Saló, Maio de 2010)
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