Lema
40 Anos a Desfazer Opinião
quinta-feira, 16 de maio de 2013
Mr. Wyatt
Barcelona, 1983. Sol, tardes de ócio, um
areal infinito à espera de que alguém se lembre dele no mês de Maio e um
gravador de cassetes sem préstimo. Penso no potencial de semelhante
matéria-prima e um quinto ingrediente me assalta o espírito. Lembro-me do que
li numa revista inglesa antes de vir. E também daquele ambíguo cocktail de brio
profissional, teimosia de burro e fé inquebrantável do qual as personagens de
Chandler e Hammett, que então absorvia com sofreguidão, extraem o sentido dos
seus (não menos intermináveis) dias. Tanto pensei que lhes meti a ideia na
cabeça. A ele, que tinha carro, e a ela, que tinha paciência. A parte da fé -a
que se tem aos vinte e tal- era comigo. O tempo, esse, era de todos. Todo o
tempo do mundo.
O homem estava ali perto -tinha lido eu.
Numa praia para Sul. Trinta quilómetros até ao primeiro ponto em que a areia se
cansa de ser areia e o mar consegue, por fim, beijar a rocha. Simples para quem
tem a idade certa e uma tarde sem fim diante de si. Ou, pelo menos, nada que
represente grande contratempo para quem ainda pensa que o mundo é um lugar azul
onde se pode correr atrás das pequenas utopias que dão sabor à existência e
provocar o acaso. Na verdade, somos assim quando nos tomamos por filhos de um
deus de média patente e ainda não sentimos na planta dos pés o ardor dos
pequenos infernos de cada esquina e muito menos sabemos que ser senhor do
destino não passa de um sonho. Mas ele, que me ajudara a crescer, porque também
se cresce a ouvir música, merecia-o. Que alguém metesse ombros a uma odisseia
impossível só para visitá-lo. Sobretudo quando andar deixara de ser uma
faculdade sua. E talvez precisasse de ouvir que o mundo não tem só o sabor
cruel da indiferença que pode levar um homem com as cidades e o mundo na cabeça
a preferir isolar-se num lugar onde a maresia quase simboliza a inocência que
esse mesmo mundo não quis para si.
Um inglês de cabelo comprido, barba e
cadeira de rodas? «No lo sé, no lo conozco, yo no me fijo en quien pasa, de éso
aqui nadie sabe nada, no hablo». Fiquei estupefacto, primeiro; perplexo,
depois; e, por fim, pensativo. Já me preparava para achar normal que ninguém
tivesse visto numa extensão de trinta quilómetros um inglês pouco dado a
expor-se. E para concluir que procurar a agulha no palheiro teria sido tarefa
infinitamente mais simples. Mas havia ali mais qualquer coisa. Veio-me à ideia
a sombra sem rosto que levou a parte da família que nunca conheci. E que talvez
tivesse feito o mesmo a esta gente com medo. Medo de uma cara desconhecida. De
um tipo saído, para eles, de parte nenhuma. De gravador a tiracolo e ladeado do
que -com a necessária imaginação- passaria por pequena escolta. Medo de falar:
de responder a perguntas insólitas ou, simplesmente, a perguntas. Perguntas que
despertavam a besta adormecida daquela outra pergunta fatal que, na noite dos
tempos, lhes levara o amigo do peito para essa outra noite da qual já não se
volta. Um medo com raízes cravadas no fundo da alma. O pior dos medos: aquele
que fica depois de extinta a sua causa. Medo do medo. De voltar a sentir medo.
Oito anos depois da partida da sombra para lugar incerto mas que parecia ser
ali mesmo ao lado. Mais perto que o recanto misterioso onde descansava do mundo
esse outro homem que nunca cheguei a encontrar. Menos tocado pelo sopro da
notoriedade e, no entanto, mais digno de apreço porque fez gente feliz.
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